Quando Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel Starling finalizaram “Brasil: uma biografia”, suas expectativas para o futuro da democracia brasileira eram positivas e esperançosas. Em 2018, três anos após o lançamento do livro, as pesquisadoras fizeram um pós-escrito, cuja frase inicial foi “países, como pessoas, por vezes sofrem com mudanças abruptas – e aquilo que ontem parecia tranquilo, hoje se convulsiona”. Assim, a democracia que parecia consolidada poucos anos atrás, voltava a se enfraquecer e o esforço de revisá-la no atual momento político vem, muitas vezes, de artes como o cinema. A forma contemporânea da sétima arte é marcada pelo cunho autobiográfico, “cujo foco das investigações são as experiências pessoais e as heranças históricas legadas pela ditadura civil-militar brasileira”. Essa característica, por sua vez, dirige-se para discussões que perpassam noções como: vítima, testemunho e, mais recentemente, lugar de fala.
Após a ditadura civil-militar brasileira, explica Seligmann-Silva (2010), a democracia foi suprimida por articulações políticas que impediram que o país passasse pelo testemunho, caminho o qual países como Argentina, Chile e Uruguai estão trilhando. Essa supressão impediu a elaboração da memória no contexto brasileiro e impossibilitou o enfrentamento político-jurídico, tornando o Brasil estagnado nesse sentido. As pessoas perseguidas no período de exceção são, “antes de mais nada, vítimas. Mas existe a possibilidade de esta comunidade sair desta posição de vítima. O testemunho pode, justamente, servir de caminho para a construção de uma nova identidade pós-catástrofe”. A passagem pelo testemunho é essencial tanto para indivíduos que vivenciaram experiências-limite, como para sociedades pós-ditadura, visto que possibilita o trabalho de uma memória individual, que se alicerça em uma memória coletiva, a qual se torna a memória do trauma construído pela sociedade. Logo, “o testemunho é uma modalidade da memória”.
Como uma forma de relação com os eventos, o testemunho parece ser composto de pequenas partes de memória que foram oprimidas pelas ocorrências que não tinham se assentado como compreensão ou lembrança, atos que não podem ser construídos como saber nem assimilados à plena cognição, eventos em excesso em relação aos nossos quadros referenciais” (FELMAN, 2000).
O testemunho, como a própria memória, é singular, pois testemunhar “tem a ver com ‘ter visto’ e não podemos ver pelo outro” e, também, é opaco, pois não oferece um relato totalizador dos eventos vividos. Essa característica lacunar evidencia a dificuldade de testemunhar: existem casos de pessoas que só conseguiram relatar a experiência-limite depois de terem se passado muitos anos. Para Seligmann-Silva (2008), esse bloqueio deriva do trauma ser uma memória de um passado que não passa. Nesse passado sempre presente, Seligmann-Silva (2005) afirma, usando como exemplo uma frase de Primo Levi, que existe “uma irrealidade característica quando se trata da percepção da memória do trauma”. Essa visão cindida da realidade, faz com que a vítima não acredite que seu passado foi real e essa perspectiva parece corroborar o gesto dos algozes de negar o passado.
No Brasil, as elites ou propagam que não houveram atrocidades no período da ditadura civil-militar; ou acreditam que o passado deve ficar onde está. Segundo Seligman-Silva (2010) elas encaram qualquer tentativa de estabelecer a verdade e a justiça como atos de revanchismo. A ação de suprimir a memória da ditadura combinada ao negacionismo torna o Brasil particularmente hostil ao testemunho; ademais, como consequência, evoca na vítima aquele pensamento perverso, de que a experiência-limite não foi verdade. É nessa situação que a passagem pelo testemunho não aconteceu e, como resultado, “nossas vítimas não puderam se transformar em acusadores, os eventos da ditadura não puderam sequer ser transformados em fatos”. Apesar de tudo, em 2011 foi criada a Comissão da Verdade, responsável por investigar os crimes cometidos na ditadura. No mesmo ano e nos anos seguintes houveram novas expressões testemunhais na arte.
Documentários autobiográficos como, por exemplo, “Diário de uma busca” (Flávia Castro, 2011) e “Os dias com ele” (Maria Clara Escobar, 2013), realizados por filhas de exilados e presos políticos, tentam reconstruir a memória e, também, utilizam o cinema como instrumento de embate e reflexão. Ilana Feldman (2018) destaca que as diretoras buscam a figura paterna de formas distintas, mas falando em nome próprio, na primeira pessoa do singular, fazem “a passagem do pai ao país, do privado ao político, da autobiografia a uma escrita marcada por forte presença da alteridade”. Esses filmes autobiográficos, realizados a partir de uma posição feminina, emergem discussões caras à conjuntura política em que foram lançados, a qual é ocasionada por diversos fatores. Um deles é a guinada dos movimentos identitários no Brasil, que culmina em um possível fracasso da esquerda.
No livro “A vítima tem sempre razão?”, Francisco Bosco mostra uma sociedade apartada após três acontecimentos significativos: as revoltas de junho de 2013, o colapso do lulismo e a emergência, ainda na década anterior, das redes sociais digitais. Fortalecidos por esses fatores, os movimentos identitários contribuíram para a visibilidade de grupos minoritários na sociedade, mostrando o quão importante é criar espaços em que minorias possam se expressar, bem como políticas públicas que auxiliam em seu reconhecimento social. Contudo, ao destacarem a diferença por meio das identidades, facilitaram práticas de discriminação social. Nesse sentido, emerge dos movimentos identitários uma capacidade destrutiva, quando conceitos como o de “lugar de fala” prioriza o sujeito que produz um relato de si mesmo, assumindo que, por possuir uma identidade, esse indivíduo possui uma relação transparente com a sua subjetividade e com os fatores que a constituíram. Essa premissa é excludente, pois, como lembra Judith Butler (2015):
Se o sujeito é opaco para si mesmo, não totalmente translúcido e conhecível para si mesmo, ele não está autorizado a fazer o que quer ou a ignorar suas obrigações para com os outros. Decerto o contrário também é verdade. A opacidade do sujeito pode ser uma consequência do fato de se conceber como ser relacional, cujas relações primeiras e primárias nem sempre podem ser apreendidas pelo conhecimento consciente. Momentos de desconhecimento sobre si mesmo tendem a surgir no contexto das relações com os outros, sugerindo que essas relações apelam a formas primárias de relacionalidade que nem sempre podem ser tematizadas de maneira explícita e reflexiva. Se somos formados no contexto de relações que para nós se tornam parcialmente irrecuperáveis, então essa opacidade parece estar embutida na nossa formação e é consequência da nossa condição de seres formados em relações de dependência.
A partir dessa reflexão de Butler podemos dizer que não existe sujeito transparente, o que torna impossível um relato definitivo do eu, logo essa narração não pode ser conclusiva em relação aos problemas de determinado grupo minoritário. Entretanto, é nesse cenário de completude que se localizam os relatos a partir do lugar de fala: apenas quem experienciou diretamente determinada identidade pode elaborar relatos sobre a mesma, quem não vivenciou não possui legitimidade, por mais que possa contribuir, uma vez que o eu acessa partes desconhecidas de si mesmo por meio da relação com o outro. Quanto a isso, Bosco (2017) faz uma observação pontual, “a noção de lugar de fala é a princípio de natureza inclusiva. Mas, por outro lado, ele pode ser mobilizado para desqualificar os sujeitos ‘de fora’, a fim de desencorajá-los a entrar no debate”. No ímpeto de criar espaços harmônicos, grande parte da esquerda brasileira se enveredou para o caminho mais simples ao excluir o outro, subtrair as discordâncias e obliterar o diferente. Os documentários analisados por Feldman (2018) vão na contramão dessa tendência:
É visando ao exame dos privilégios adquiridos pelas narrativas em primeira pessoa, consideradas fontes sempre mais autênticas, verdadeiras e legítimas, que se pode dizer que, diferentemente da febre autobiográfica e do teor confessional que dão a tônica da cultura atual, Os dias com ele é dotado de uma coragem: não evita o mal-estar, os desentendimentos e o desencontro, ao mesmo tempo em que assume a dificuldade de compreensão, a precariedade dos meios e a opacidade da linguagem como elementos constitutivos não apenas das relações familiares em jogo, mas sobretudo de sua matéria fílmica.
Quando a alteridade é excluída da lógica de um debate, a transferência é impedida e, dessa forma, é bloqueada qualquer construção e reconstrução da nossa história, qualquer possibilidade de encenar aquilo que não pode ser narrado. Por isso, a noção de testemunho supera a de lugar de fala, pois a primeira não pressupõe a transparência, nem uma totalidade do relato que exclui os “de fora”, permitindo uma experiência democrática mais plena, uma vez que “as verdadeiras experiências democráticas são aquelas que abrigam o dissenso e o desentendimento em seu interior, e não as que impõem autoritariamente um consenso” (FELDMAN, 2018). Em um contexto político como o do Brasil, em que a esquerda fracassa a cada dia, com um governo que desmonta paulatinamente tudo aquilo de positivo que foi construído nos últimos anos, talvez um dos papéis que podem ser desempenhados pelo cinema contemporâneo, seja exatamente o de se aproximar do testemunho, como os exemplares filmes citados anteriormente. Assim, a partir de uma arte testemunhal talvez possamos passar para uma cultura testemunhal, a qual pode auxiliar na construção de uma memória do trauma, que foi e continua sendo recusada nessa sociedade.
Brasil: uma biografia – Pós escrito. (Lilia Moritz Schwarcz e Heloisa Murgel)
Podem os personagens secundários falar? Posição feminina no documentário autobiográfico face à memória da ditadura militar no Brasil. (Ilana Feldman)
O local do testemunho e
O testemunho e a política da memória: o tempo depois das catástrofes. (Márcio Seligmann-Silva)
Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. (Shoshana Felman)
Catástrofe e representação. (Arthur Nestrovski)
A vítima tem sempre razão? Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro. (Francisco Bosco)
Relatar a si mesmo – crítica da violência ética. (Judith Butler)