Todo dia, por volta das três da tarde, o gato da vizinha pula no parapeito da janela. O sol aquece suas patas, seus pelos ficam marcados pelos buracos da rede de proteção e entre cheirar o pé de cebolinha e observar o movimento da rua, ele não esquece de tomar seu banho diário. Qualquer mínimo barulho que venha do meu apartamento faz seus olhos assustados desviarem para mim, que continuo às sombras, assistindo a cor do dia mudar no reflexo da parede branca, por detrás da tela high definition do notebook.
Para todos os efeitos, eu não enlouqueci. Mas, mesmo quando ele não está ali, sinto que espreita meus ombros, encurrala minha espontaneidade, joga na minha cara os meus defeitos. Se esqueço a toalha úmida em cima da cama, o gato incorpora a voz irritada da minha mãe. Se adio algo importante para ficar no sofá assistindo a um filme ruim, o gato pede meu extrato bancário e como um empreendedor diz “não é assim que se faz o primeiro milhão antes dos 30”. Se começo a escrever um texto sobre solidão, o gato recita Drummond e desmonta minha vontade de continuar, afinal já está tudo dito.
Pesquiso por analistas online, quem sabe alguém pode me ajudar a expulsar o olhar do gato. Na primeira sessão, explico meu problema para um homem de meia idade, ele pergunta se tenho certeza de que se trata de um gato. Respondo que não sei, poderia ser uma gata, a vizinha de cima chama ele de gata. O psicanalista coloca o dedo em riste e diz “bom, isso Freud explica!”, desligo.
Na segunda tentativa, escolhi uma mulher só um pouco mais velha do que eu. Falo do gato, dos filmes ruins e dou alguns detalhes da minha conta bancária e ela diz “vou te interromper por um instante, ok?! Só o nosso primeiro encontro é experimental… Você tem certeza que consegue bancar as outras sessões?”. Certeza eu tinha, mas a indagação cortou o clima.
Talvez consultas online não fossem para mim. O problema persistia, mas eu começava a me convencer de que não poderia ser tão ruim. Suportaria ligar para a minha mãe dizendo que, às vezes, a toalha fica úmida e deixa um cheiro esquisito no corpo. Conseguiria olhar para minhas economias como um Karl Marx apaixonado pela vida: elas são para cerveja, livros, espetáculos, festas e bar; para pensar, amar, teorizar, cantar e sofrer. Saberia escrever sobre o vão da existência, só para concordar com Guimarães Rosa, “eu estou só. O gato está só. As árvores estão sós”.
Não sou supersticiosa, mas considero que o número três é envolto por um véu de sorte. Última tentativa, vou para a terceira consulta. Chego no parapeito da minha janela e como ainda é cedo, fico admirando as plantas da floreira: lavanda, manjerona, manjericão e capim-limão. Será que essas ervas também me encaram? Respiro fundo para dissipar a ideia. Quando olho um pouco para cima, lá está ele, vejo suas pupilas abauladas focadas em mim. O gato agora é meu analista, ele me ouve por meia hora antes de perguntar: “por que tens tanto medo?” Por mais meia hora fico calada, vai que a resposta não sai bem elaborada, melhor deixar para a próxima sessão.