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lua elétrica

Em uma rua sem fim, Júlia caminha sem nunca encontrar a esquina. Seus pés estão exauridos quando, no limite do horizonte, avista uma figura despontar. Os passos são como lentes: quanto mais se aproxima, mais nítidas ficam as características daquela mulher – agora já se pode dizer que é uma mulher. A poucos metros distantes, não restam dúvidas de que quem chega é parte de uma outra cultura. Uma cultura distante da vida sedentária, de casas com colchões forrados por lençóis bem passados, de banheiros com chuveiros quentes e descargas em dois módulos, de cozinhas com fogões elétricos e alimentos conservados. 

A mulher de pés descalços trajava colares que tilintavam ao baterem uns nos outros. Seu cabelo era escondido pelo lenço roxo e a blusa azul com franjas nas extremidades revelava pouco de seu corpo. A saia estampada com mandalas amarelas no fundo marrom se arrastava no chão o que deixava suas pontas sujas de terra. Ela chega perto de Júlia, diz baixinho em seu ouvido: “uma grande fortuna espera por você”. E continua andando na direção oposta. Júlia olha para trás, mas a mulher some. Antes de voltar a andar na rua infinita, abre os olhos: acorda sobre a mesa, na sua frente está o monitor onde edita mais um de seus filmes.

_

Na adolescência Júlia estudava a história da Sérvia e encantava-se pelos territórios balcãs, pelos povos ciganos e pelas músicas tradicionais da região. Nos seus sonhos a viagem

para aquele país já havia acontecido milhares de vezes antes de chegar ao aeroporto e partir para Belgrado. A primeira vez que colocou os pés na capital da Sérvia foi para participar, junto com o melhor amigo, de um festival de cinema de estudantes. Eles fizeram um filme sobre o avô de Júlia que trabalhou em uma fábrica de chapéus. A neta pergunta “Quantos anos vai fazer que cê trabalha aqui, vô?”. A resposta chega serena: “sessenta anos, entrei dia 15 de fevereiro de 1943. Eu não guardo data, mas essa eu guardei!”. Após trocarem essas palavras, sorriem um para o outro. 

O povo sérvio, frio perto da animosidade dos brasileiros calorosos, terminou de assistir ao filme sem chorar, mas no festival dedicou a ele uma menção honrosa, que foi simbolizada por uma medalha que, sempre ao ser é tocada, traz uma torrente de lembranças inesquecíveis, como o último dia em Belgrado. Júlia e o amigo usavam suas câmeras para registrarem os momentos finais da primeira viagem juntos. Enquanto olhavam o mundo pelas lentes, nem perceberam a noite chegando com toda sua força. Júlia trocava olhares com uma mulher e se voltava para a câmera, tomava um gole de cerveja e esperava reunir toda a coragem para se aproximar. Ela começou a ser chacoalhada e, quando olhou, o mundo ao seu redor também chacoalhava. A coragem nunca chegou.

Júlia voltou para o Brasil pensando nos olhares colidindo ao mesmo tempo em que a terra tremia. Seus ossos sacudiam com a lembrança e o coração descompassava. Em casa, antes mesmo de contar para a família sobre a viagem, foi correndo rever as gravações daquela noite. Pessoas conversavam, carros aceleravam, copos brindavam e a voz da mulher aparecia em meio a esses barulhos, “Kada noć pada”. Por várias noites Júlia passou revivendo esse instante, decorou toda a gravação, mas na sua cabeça só ecoava aquela frase que, sem nenhum conhecimento do idioma sérvio, pronunciava errado. Para compreender aquela mulher que ela tinha certeza ser o grande amor de sua vida, encontrou um professor para ensiná-la sérvio-croata.

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O vento frio do oceano Índico alastra sobre a pele de toda a equipe que, de longe pode ser vista naquela paisagem de Gorba, uma aldeia próxima a Maputo, a capital de Moçambique. São muitas pessoas operando diversos equipamentos em uma estrutura descomunal. De um lado o sol recria as cores do céu com laranja e roxo, de outro Júlia, ainda estudante, não pode tocar em nada e só observa a produção hollywoodiana. O contraste entre moçambicanos e a equipe desconcerta Júlia que, ao contemplar onde está e a chance que está tendo, sente-se uma pessoa de sorte.

Júlia – Em maio de 2006, tive a oportunidade de acompanhar um período das filmagens de “Diamante de Sangue”, dirigido por Edward Zwick e fotografado por Eduardo Serra. Observar seu trabalho durante essas semanas foi muito importante. Nunca tinha ido à um set de longa-metragem. Havia trabalhado e freqüentado os sets de nossos curtas-metragens feitos na faculdade, mas não conhecia de perto outras formas de cinema, em nenhuma outra escala.

Na sua frente, o mar se desfaz em ondas calmas, enquanto a equipe alvoroçada monta os equipamentos. Júlia fica curiosa pelas pessoas que enchem balões com hélio e os soltam em direção a água. Quando todos os balões já estão no céu, ela entende tudo. A poucos metros dali, os nativos saem de suas casas e enxergam o mar, mais bonito que o mar de todas as outras noites. A iluminação artificial implantada pelo fotógrafo do filme pinta a luz da lua na água escura. Ele transforma a realidade e faz o povo acordado achar que estava sonhando: Júlia tenta guardar toda a cena para, nas suas fantasias, contar tudo para a mulher; os nativos seguram esse momento antes de Hollywood submergi-los em um pesadelo.

As ruas de Maputo foram assoladas pelas guerras civis após a independência de Moçambique, em 1975. A brutalidade dos conflitos aniquilou os sistemas de saúde e educação e, em algumas regiões do país, a produção agrícola desapareceu. A violência trouxe a fome e a morte de milhões de pessoas. Apesar do acordo de paz em 1992, a população vive insegura. As produções hollywoodianas são movidas pelo dinheiro e cada segundo custa tanto quanto a vida de muitas pessoas jamais custará. Uma cena inimaginável: uma pessoa, das inúmeras que compõem a equipe, sai pelas ruas avisando aos nativos que uma guerra está prestes a acontecer no filme.

Bombas, tiros e carros em chamas. Os atores principais fogem e todas as pessoas da equipe estão vidradas, cada uma em sua função. É uma cena cara, não podem errar. Júlia enxerga à sua volta mortes, fogo, paredes furadas por balas e nas janelas das casas pessoas assustadas, esfregando os olhos, querendo não acreditar na própria visão, que anunciava a volta da guerra, o terror do inferno. Ela pensa no Brasil e na Sérvia, ilesos de sentirem o mesmo medo, ao menos naquele momento. Pensa em si, na mulher e no tremor que as uniu. Envia sinais telepáticos de que está segura e recebe outros, que transpõem a distância e a falta de comunicação verbal. 

Júlia – Os diamantes não são de sangue, eles são de pedra, de brilho. Os homens é que são de sangue, aprenderam a se comportar assim: pra matar, odiar, usurpar. As facetas dos diamantes se refletem, se espirram e rebatem. Algumas escapam: são os feixes que se esquivam, produzindo outros sentimentos, tão caros às belas luzes de cinema.

As viagens no cinema podem ser glamorosas ou brutas. A viagem para Moçambique foi glamourosa, mesmo tendo presenciado toda brutalidade do contraste entre Hollywood e o país. Mas quando voltou para Sérvia, após três anos longe, Júlia não esperava nada além da viagem bruta, só pela aventura; pela vontade de reconhecer as pessoas, uma pessoa: aquela mulher, que ainda dominava os seus pensamentos. 

À sua disposição uma praça pública, um nome e um grupo de rostos conhecidos. Na vontade de descarregar todo o amor calado, ignorou as improbabilidades e voltou durante vários dias para a mesma praça, até reconhecer uma amiga da mulher, que lhe passou o número. No telefone mais próximo, ouve a voz que já conhecia tão bem dizendo mais do que três palavras e, com ela, combina um reencontro. Quando a noite caiu, os barulhos da rua eram semelhantes aos de anos atrás, Júlia esperava a mulher bebendo a mesma cerveja, no esforço de ressuscitar o cenário onde toda aquela paixão teve início, sem considerar que, naquela lógica, o irreproduzível eram os principais fatores: ela e a mulher.

Sente um toque em seu braço, ela sorri sem receber um sorriso de volta. Júlia não sabe por onde começar quando vê que a mulher mal a reconhece. Condensando tudo que poderia ter dito, disse a única coisa que importava: “Volim te”. A mulher a olha de cima a baixo e não compreende de onde vem todo aquele amor. Em seguida, Júlia ouviu cada sílaba pronunciada e as poucas palavras que elas formaram foram suficientes para fazê-la compreender que sentiu tudo sozinha. Todos os diálogos, todos os sinais telepáticos, todos finais felizes, tudo na sua cabeça. As lágrimas de Júlia, todas no travesseiro.

Júlia – Eu ia falar que era sobre a intensidade da idade, mas se passaram treze, quatorze anos e eu continuo me apaixonando daquele jeito, seja por um tema, seja por uma pessoa. Para se apaixonar assim, tem que estar muito aberto, mas às vezes o outro não está. Em um documentário, você pode estar apaixonado por um tema, mas o personagem que você escolheu não quer saber do tema ou de você.

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O sol se escondia atrás das montanhas e as fogueiras começavam a ser acesas. As crianças corriam e choravam ao redor delas, as mulheres iniciavam a galinhada e Júlia, sentada embaixo da árvore, contava histórias para o ciganinho em seu colo. Há poucos dias imaginou que seria impossível voltar a fazer isso, quando vomitou as entranhas em uma tenda improvisada que chamavam de hospital. Passou dias deitada na cama esperando que a dor passasse. O suor frio no meio da noite não a deixava dormir e a febre tornava todos cobertores inúteis, eles nunca aqueciam o suficiente. A morte ficou próxima demais e Júlia, no cume de seu delírio, entendeu sua fortuna.

Tudo que acreditava ser regido pela sorte ou pelo azar foi, na verdade, culpa dela. Como quando, sem nenhuma pretensão, ajudou Eduardo Serra a conhecer São Paulo e depois, “sem saber o motivo”, foi convidada para participar do Diamante de Sangue. Quando, por anos, alimentou uma paixão inventada e depois ficou “sem entender porque o amor é tão complicado”.

Júlia – Eu sempre busquei autonomia na minha vida. Quando eu era bem pequena, falava pra minha mãe que ela só mandava em mim na comida ‘mãe você só manda em mim na comida, desencana do resto’. E é verdade, ela cuidou da minha alimentação muito bem, mas só nisso que eu deixei ela cuidar. No resto, eu queria essa autonomia, que até hoje eu busco muito. 

Só quando estava naquela cama, às margens do mundo civilizado, que Júlia entendeu o peso das próprias escolhas. Quando voltou para a vida do povoado, optou por comer a galinhada que havia evitado por dois meses. Ela enchia o garfo e devorava pedaço a pedaço, no início mal sentia o gosto, mas no segundo prato apreciou aquela comida simples. No dia seguinte acordou saudável e, livre da sorte e do azar, o mundo das escolhas a esperava.

Em uma rua sem fim, Júlia caminha sem nunca encontrar a esquina. Seus pés estão exauridos quando, no limite do horizonte, avista uma figura despontar. Os passos são como lentes: quanto mais se aproxima, mais nítidas ficam as características daquela mulher – agora já se pode dizer que é uma mulher. A poucos metros distantes, não restam dúvidas de que quem chega é parte de uma outra cultura. Uma cultura distante da vida sedentária, de casas com colchões forrados por lençóis bem passados, de banheiros com chuveiros quentes e descargas em dois módulos, de cozinhas com fogões elétricos e alimentos conservados. 

A mulher de pés descalços trajava colares que tilintavam ao baterem uns nos outros. Seu cabelo era escondido pelo lenço roxo e a blusa azul com franjas nas extremidades revelava pouco de seu corpo. A saia estampada com mandalas amarelas no fundo marrom se arrastava no chão o que deixava suas pontas sujas de terra. Ela chega perto de Júlia, diz baixinho em seu ouvido: “uma grande fortuna espera por você”. E continua andando na direção oposta. Júlia olha para trás, mas a mulher some. Antes de voltar a andar na rua infinita, abre os olhos: acorda sobre a mesa, na sua frente está o monitor onde edita mais um de seus filmes.

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Na adolescência Júlia estudava a história da Sérvia e encantava-se pelos territórios balcãs, pelos povos ciganos e pelas músicas tradicionais da região. Nos seus sonhos a viagem para aquele país já havia acontecido milhares de vezes antes de chegar ao aeroporto e partir para Belgrado. A primeira vez que colocou os pés na capital da Sérvia foi para participar, junto com o melhor amigo, de um festival de cinema de estudantes. Eles fizeram um filme sobre o avô de Júlia que trabalhou em uma fábrica de chapéus. A neta pergunta “Quantos anos vai fazer que cê trabalha aqui, vô?”. A resposta chega serena: “sessenta anos, entrei dia 15 de fevereiro de 1943. Eu não guardo data, mas essa eu guardei!”. Após trocarem essas palavras, sorriem um para o outro. 

O povo sérvio, frio perto da animosidade dos brasileiros calorosos, terminou de assistir ao filme sem chorar, mas no festival dedicou a ele uma menção honrosa, que foi simbolizada por uma medalha que, sempre ao ser é tocada, traz uma torrente de lembranças inesquecíveis, como o último dia em Belgrado. Júlia e o amigo usavam suas câmeras para registrarem os momentos finais da primeira viagem juntos. Enquanto olhavam o mundo pelas lentes, nem perceberam a noite chegando com toda sua força. Júlia trocava olhares com uma mulher e se voltava para a câmera, tomava um gole de cerveja e esperava reunir toda a coragem para se aproximar. Ela começou a ser chacoalhada e, quando olhou, o mundo ao seu redor também chacoalhava. A coragem nunca chegou.

Júlia voltou para o Brasil pensando nos olhares colidindo ao mesmo tempo em que a terra tremia. Seus ossos sacudiam com a lembrança e o coração descompassava. Em casa, antes mesmo de contar para a família sobre a viagem, foi correndo rever as gravações daquela noite. Pessoas conversavam, carros aceleravam, copos brindavam e a voz da mulher aparecia em meio a esses barulhos, “Kada noć pada”. Por várias noites Júlia passou revivendo esse instante, decorou toda a gravação, mas na sua cabeça só ecoava aquela frase que, sem nenhum conhecimento do idioma sérvio, pronunciava errado. Para compreender aquela mulher que ela tinha certeza ser o grande amor de sua vida, encontrou um professor para ensiná-la sérvio-croata.

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O vento frio do oceano Índico alastra sobre a pele de toda a equipe que, de longe pode ser vista naquela paisagem de Gorba, uma aldeia próxima a Maputo, a capital de Moçambique. São muitas pessoas operando diversos equipamentos em uma estrutura descomunal. De um lado o sol recria as cores do céu com laranja e roxo, de outro Júlia, ainda estudante, não pode tocar em nada e só observa a produção hollywoodiana. O contraste entre moçambicanos e a equipe desconcerta Júlia que, ao contemplar onde está e a chance que está tendo, sente-se uma pessoa de sorte.

Em maio de 2006, tive a oportunidade de acompanhar um período das filmagens de “Diamante de Sangue”, dirigido por Edward Zwick e fotografado por Eduardo Serra. Observar seu trabalho durante essas semanas foi muito importante. Nunca tinha ido à um set de longa-metragem. Havia trabalhado e freqüentado os sets de nossos curtas-metragens feitos na faculdade, mas não conhecia de perto outras formas de cinema, em nenhuma outra escala.

Na sua frente, o mar se desfaz em ondas calmas, enquanto a equipe alvoroçada monta os equipamentos. Júlia fica curiosa pelas pessoas que enchem balões com hélio e os soltam em direção a água. Quando todos os balões já estão no céu, ela entende tudo. A poucos metros dali, os nativos saem de suas casas e enxergam o mar, mais bonito que o mar de todas as outras noites. A iluminação artificial implantada pelo fotógrafo do filme pinta a luz da lua na água escura. Ele transforma a realidade e faz o povo acordado achar que

estava sonhando: Júlia tenta guardar toda a cena para, nas suas fantasias, contar tudo para a mulher; os nativos seguram esse momento antes de Hollywood submergi-los em um pesadelo.

As ruas de Maputo foram assoladas pelas guerras civis após a independência de Moçambique, em 1975. A brutalidade dos conflitos aniquilou os sistemas de saúde e educação e, em algumas regiões do país, a produção agrícola desapareceu. A violência trouxe a fome e a morte de milhões de pessoas. Apesar do acordo de paz em 1992, a população vive insegura. As produções hollywoodianas são movidas pelo dinheiro e cada segundo custa tanto quanto a vida de muitas pessoas jamais custará. Uma cena inimaginável: uma pessoa, das inúmeras que compõem a equipe, sai pelas ruas avisando aos nativos que uma guerra está prestes a acontecer no filme.

Bombas, tiros e carros em chamas. Os atores principais fogem e todas as pessoas da equipe estão vidradas, cada uma em sua função. É uma cena cara, não podem errar. Júlia enxerga à sua volta mortes, fogo, paredes furadas por balas e nas janelas das casas pessoas assustadas, esfregando os olhos, querendo não acreditar na própria visão, que anunciava a volta da guerra, o terror do inferno. Ela pensa no Brasil e na Sérvia, ilesos de sentirem o mesmo medo, ao menos naquele momento. Pensa em si, na mulher e no tremor que as uniu. Envia sinais telepáticos de que está segura e recebe outros, que transpõem a distância e a falta de comunicação verbal. 

Os diamantes não são de sangue, eles são de pedra, de brilho. Os homens é que são de sangue, aprenderam a se comportar assim: pra matar, odiar, usurpar. As facetas dos diamantes se refletem, se espirram e rebatem. Algumas escapam: são os feixes que se esquivam, produzindo outros sentimentos, tão caros às belas luzes de cinema.

As viagens no cinema podem ser glamorosas ou brutas. A viagem para Moçambique foi glamourosa, mesmo tendo presenciado toda brutalidade do contraste entre Hollywood e o país. Mas quando voltou para Sérvia, após três anos longe, Júlia não esperava nada além da viagem bruta, só pela aventura; pela vontade de reconhecer as pessoas, uma pessoa: aquela mulher, que ainda dominava os seus pensamentos. 

À sua disposição uma praça pública, um nome e um grupo de rostos conhecidos. Na vontade de descarregar todo o amor calado, ignorou as improbabilidades e voltou durante vários dias para a mesma praça, até reconhecer uma amiga da mulher, que lhe passou o número. No telefone mais próximo, ouve a voz que já conhecia tão bem dizendo mais do que três palavras e, com ela, combina um reencontro. Quando a noite caiu, os barulhos da rua eram semelhantes aos de anos atrás, Júlia esperava a mulher bebendo a mesma cerveja, no esforço de ressuscitar o cenário onde toda aquela paixão teve início, sem considerar que, naquela lógica, o irreproduzível eram os principais fatores: ela e a mulher.

Sente um toque em seu braço, ela sorri sem receber um sorriso de volta. Júlia não sabe por onde começar quando vê que a mulher mal a reconhece. Condensando tudo que poderia ter dito, disse a única coisa que importava: “Volim te”. A mulher a olha de cima a baixo e não compreende de onde vem todo aquele amor. Em seguida, Júlia ouviu cada sílaba pronunciada e as poucas palavras que elas formaram foram suficientes para fazê-la compreender que sentiu tudo sozinha. Todos os diálogos, todos os sinais telepáticos, todos finais felizes, tudo na sua cabeça. As lágrimas de Júlia, todas no travesseiro.

Eu ia falar que era sobre a intensidade da idade, mas se passaram treze, quatorze anos e eu continuo me apaixonando daquele jeito, seja por um tema, seja por uma pessoa. Para se apaixonar assim, tem que estar muito aberto, mas às vezes o outro não está. Em um documentário, você pode estar apaixonado por um tema, mas o personagem que você escolheu não quer saber do tema ou de você.

O sol se escondia atrás das montanhas e as fogueiras começavam a ser acesas. As crianças corriam e choravam ao redor delas, as mulheres iniciavam a galinhada e Júlia, sentada embaixo da árvore, contava histórias para o ciganinho em seu colo. Há poucos dias imaginou que seria impossível voltar a fazer isso, quando vomitou as entranhas em uma tenda improvisada que chamavam de hospital. Passou dias deitada na cama esperando que a dor passasse. O suor frio no meio da noite não a deixava dormir e a febre tornava todos cobertores inúteis, eles nunca aqueciam o suficiente. A morte ficou próxima demais e Júlia, no cume de seu delírio, entendeu sua fortuna.

Tudo que acreditava ser regido pela sorte ou pelo azar foi, na verdade, culpa dela. Como quando, sem nenhuma pretensão, ajudou Eduardo Serra a conhecer São Paulo e depois, “sem saber o motivo”, foi convidada para participar do Diamante de Sangue. Quando, por anos, alimentou uma paixão inventada e depois ficou “sem entender porque o amor é tão complicado”.

Eu sempre busquei autonomia na minha vida. Quando eu era bem pequena, falava pra minha mãe que ela só mandava em mim na comida ‘mãe você só manda em mim na comida, desencana do resto’. E é verdade, ela cuidou da minha alimentação muito bem, mas só nisso que eu deixei ela cuidar. No resto, eu queria essa autonomia, que até hoje eu busco muito.

Só quando estava naquela cama, às margens do mundo civilizado, que Júlia entendeu o peso das próprias escolhas. Quando voltou para a vida do povoado, optou por comer a galinhada que havia evitado por dois meses. Ela enchia o garfo e devorava pedaço a pedaço, no início mal sentia o gosto, mas no segundo prato apreciou aquela comida simples. No dia seguinte acordou saudável e, livre da sorte e do azar, o mundo das escolhas a esperava.