As quatro paredes formam um lugar dividido por cômodos. Desde o espaço entre os móveis e a decoração escolhida com cuidado, até as cortinas sendo tapa-olhos dos curiosos. As casas modernas são únicas, associadas ao conforto, à individualidade e à segurança, onde o girar da maçaneta pode transportar um para o universo de outro.
Mas há uma sala nada parecida com as encontradas nessas casas, que representa os pequenos espaços de compartilhamento, que têm identidade própria, sem se importar com os indivíduos que o coabitam. Em vez de quadros, as paredes são forradas de espuma. As cadeiras confortáveis substituem os sofás, enquanto as mesas suportam gigantes painéis, responsáveis por auxiliar na edição analógica do som. Nessa sala, Maria respira.
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As mudanças políticas do Brasil nos anos 90 tornaram o desemprego uma condição comum. Quem fazia cinema se ressentia com o fechamento da Embrafilme, que por anos
foi responsável por aumentar os números do cinema nacional. Antes dessa crise, Maria passava por sua própria. Há dez anos, trabalhava com produção, uma atividade complicada, que se relaciona com os outros departamentos envolvidos na realização de um filme. Ela era responsável por resolver todos os problemas da melhor maneira possível e quando não conseguia, seus pensamentos não a deixavam dormir.
Maria – Eu não suportava mais fazer produção e por causa dela eu quase desisti do cinema.
O cinema foi um acidente em sua vida: quando visualizou as luzes, elas já estavam perto demais. Ao abrir os olhos, suas mãos tremiam e o coração vibrava da garganta ao estômago. O socorro chegou, a adrenalina diminuiu logo, mas continuava sendo difícil caminhar na rua sem se desviar dos faróis. Maria, ao sentar no estúdio de som, respirou; o acidente passou a ser uma escolha consciente, em um local tão acertado, que continuaria lá pelo resto da vida.
Em meio à crise do cinema nacional, ela tinha emprego e, contra todas as expectativas, estava apaziguada. O trabalho consistia em transformar trailers americanos em nacionais. Primeiro, era gravada a narração em português e, depois, todo o trailer era reeditado, encaixando os novos sons às imagens já existentes. Era uma tarefa meticulosa e, junto ao seu marido, reformava mais de quarenta trailers por mês, ambos em uma relação intensa com o trabalho, passando mais horas ali do que jamais passariam em casa.
Maria – Só consegui trabalhar durante oito meses de toda a minha vida em um emprego formal e quase fiquei histérica. Meu movimento interno não é assim e se tem uma coisa que adoro em cinema é estar trabalhando com pessoas diferentes, com projetos diferentes. Em um momento estou fazendo documentário seríssimo; no outro, estou fazendo um filme com a Xuxa.
A vida doméstica toma pequenas frações dos seus dias. Seu trabalho não é daqueles que terminam com o fim do expediente; ele infiltra a vida, e cada experiência pode servir de matéria-prima. Os sons do Rio de Janeiro, os ruídos de sua filha ainda bebê, uma conversa com o marido, livros, exposições, seus filmes, filmes dos outros… Tudo passível de ser rememorado e transformado em arte.
Maria – Usamos artifícios, métodos e instrumentos para, no fim, apenas contar histórias. Esse ato pertence intrinsecamente ao desenvolvimento da humanidade como espécie, ele está no nosso DNA. Por isso, contar histórias é muito simples e, também, muito visceral.
Os trailers ficaram para trás; o estúdio agora é seu e ela continua na mesma profissão que muitas pessoas fracassaram. Nesse novo lugar, trabalha com seu marido e uma sócia. Após poucos meses, o estúdio havia desenvolvido um modo de cooperação que ela jamais havia presenciado. Ninguém era mandante, as ideias eram expressadas e retrabalhadas e o resultado final tinha mais qualidade. Todo o cinema seguia hierarquias, fazendo do seu estúdio uma ilha isolada.
Maria – O cinema é sexista e também é um meio profundamente arrogante. Nós somos artistas, é difícil de lidar. A mulher deve começar a ser vista como uma pessoa que colabora, e muito, no trabalho criativo. Especialmente na questão do som, nós temos muito a acrescentar. O olhar feminino permite ver a delicadeza, a finura e o detalhe. E é isso que a edição de som deve explorar.
O estúdio recebeu uma proposta para realizar o desenho sonoro de um filme. O diretor, como é muito comum, tinha uma visão conservadora do som. Seu pedido era que, em uma vila do interior do Rio Grande do Sul, houvesse vacas mugindo, galos cantando ao amanhecer e sinos soando na igreja.
Quando assistiu ao filme, Maria visualizou nele dois momentos distintos. O início, mais quadrado, mais realista, que pedia uma edição tradicional. E o ponto de virada, quando a personagem tornava-se messiânica. Nessa parte, o tom sonoro do filme deveria se transformar para mais subjetivo, acompanhando a mudança de personalidade junto com a narrativa. Formalizou sua proposta de desenho sonoro, descrevendo-o em cinco páginas por escrito e conseguiu o filme.
Maria – Na primeira batalha ouvimos todos os tiros, todos os gritos, todos os cavalos. Na segunda batalha ouvimos o que as pessoas sentem. O som da respiração mostra o medo, que faz a batalha real parecer um sonho distante do inferno vivenciado só com os sentimentos daquela pessoa. A Paixão de Jacobina teve uma leitura feminina, mesmo que tenha sido feito por um homem.
Depois que começou a trabalhar com som, nunca voltou a ser difícil dormir; em geral, o cansaço vencia. Com o estúdio, é dominada por uma alegria, que a faz trabalhar cada vez mais, esperando não perder nada. Os equipamentos analógicos são substituídos pelos digitais e esse é outro motivo para passar mais tempo por ali. Desse lugar, vê a filha ressentida pelos pais trabalharem tanto, culpando-os por não ter tido infância. Maria tem consciência de que o mundo de uma adolescente é restrito, mas que também é o único mundo conhecido por ela. Após esse episódio, Maria começa a se arrepender, notando que era ela quem sempre perderia: sua sócia não tem filhos, seu marido é homem.
Maria – O cinema é uma profissão difícil de entrar, mas manter-se nela é quase impossível. Para conseguir ficar, superando a vontade de desistir, você tem que estar sempre brigando com os outros, consigo mesma. Trabalhando e estudando muito. O que significa que às vezes você perde a noção de que está em uma parte incrível da sua vida.
As noites, os fins de semana, os feriados, os aniversários, todas situações cotidianas que Maria continua sacrificando para permanecer. Por mais que estivesse fazendo um trabalho excelente, dominando novas tecnologias e proporcionando a melhor vida possível para sua filha, sentia-se insuficiente. Desviando do caminho proposto pela sociedade, era acossada pela culpa materna, por deixar a filha crescer longe dos seus sentidos.
Nesse ritmo, os anos passam rápido, as propostas aumentam e ela começa a se envolver politicamente com a área. A cada novo projeto, Maria lida com desafios imprevisíveis e,
após vinte anos trabalhando com som, ainda continua apaixonada por essa característica assustadora de sua profissão, recusando-se a ter medo. Suas ações no cinema brasileiro culminaram no prêmio de Personalidade Sonora.
Maria – O Prêmio de personalidade sonora em 2017, não é só por um trabalho bom. Ele é o prêmio pela minha história no cinema, pela forma que eu me envolvi com a área. Montei a Associação dos Profissionais de Som Cinematográfico, sou associada à Associação Brasileira de Cinematografia e faço com eles grupos de trabalho que trazem masterclasses para o Rio de Janeiro. Ganhar o prêmio de personalidade sonora significa uma aprovação em relação a tudo que passei e sacrifiquei para tornar o som mais significativo no cinema.
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Em casa, gira a maçaneta da porta do quarto da filha e na sua frente enxerga parte de si mesma em outra pessoa. Anos atrás, descobriu que ela não seguiria seus passos profissionais e a culpa ocupou seus pensamentos. No universo da filha, já formada, Maria a escuta afirmar que será atriz. Seus olhos marejam: sua filha renunciou ao medo.
As quatro paredes formam um lugar dividido por cômodos. Desde o espaço entre os móveis e a decoração escolhida com cuidado, até as cortinas sendo tapa-olhos dos curiosos. As casas modernas são únicas, associadas ao conforto, à individualidade e à segurança, onde o girar da maçaneta pode transportar um para o universo de outro.
Mas há uma sala nada parecida com as encontradas nessas casas, que representa os pequenos espaços de compartilhamento, que têm identidade própria, sem se importar com os indivíduos que o coabitam. Em vez de quadros, as paredes são forradas de espuma. As cadeiras confortáveis substituem os sofás, enquanto as mesas suportam gigantes painéis, responsáveis por auxiliar na edição analógica do som. Nessa sala, Maria respira.
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As mudanças políticas do Brasil nos anos 90 tornaram o desemprego uma condição comum. Quem fazia cinema se ressentia com o fechamento da Embrafilme, que por anos foi responsável por aumentar os números do cinema nacional. Antes dessa crise, Maria passava por sua própria. Há dez anos, trabalhava com produção, uma atividade complicada, que se relaciona com os outros departamentos envolvidos na realização de um filme. Ela era responsável por resolver todos os problemas da melhor maneira possível e quando não conseguia, seus pensamentos não a deixavam dormir.
Eu não suportava mais fazer produção e por causa dela eu quase desisti do cinema.
O cinema foi um acidente em sua vida: quando visualizou as luzes, elas já estavam perto demais. Ao abrir os olhos, suas mãos tremiam e o coração vibrava da garganta ao estômago. O socorro chegou, a adrenalina diminuiu logo, mas continuava sendo difícil caminhar na rua sem se desviar dos faróis. Maria, ao sentar no estúdio de som, respirou; o acidente passou a ser uma escolha consciente, em um local tão acertado, que continuaria lá pelo resto da vida.
Em meio à crise do cinema nacional, ela tinha emprego e, contra todas as expectativas, estava apaziguada. O trabalho consistia em transformar trailers americanos em nacionais. Primeiro, era gravada a narração em português e, depois, todo o trailer era reeditado, encaixando os novos sons às imagens já existentes. Era uma tarefa meticulosa e, junto ao seu marido, reformava mais de quarenta trailers por mês, ambos em uma relação intensa com o trabalho, passando mais horas ali do que jamais passariam em casa.
Só consegui trabalhar durante oito meses de toda a minha vida em um emprego formal e quase fiquei histérica. Meu movimento interno não é assim e se tem uma coisa que adoro em cinema é estar trabalhando com pessoas diferentes, com projetos diferentes. Em um momento estou fazendo documentário seríssimo; no outro, estou fazendo um filme com a Xuxa.
A vida doméstica toma pequenas frações dos seus dias. Seu trabalho não é daqueles que terminam com o fim do expediente; ele infiltra a vida, e cada experiência pode servir de matéria-prima. Os sons do Rio de Janeiro, os ruídos de sua filha ainda bebê, uma conversa com o marido, livros, exposições, seus filmes, filmes dos outros… Tudo passível de ser rememorado e transformado em arte.
Usamos artifícios, métodos e instrumentos para, no fim, apenas contar histórias. Esse ato pertence intrinsecamente ao desenvolvimento da humanidade como espécie, ele está no nosso DNA. Por isso, contar histórias é muito simples e, também, muito visceral.
Os trailers ficaram para trás; o estúdio agora é seu e ela continua na mesma profissão que muitas pessoas fracassaram. Nesse novo lugar, trabalha com seu marido e uma sócia. Após poucos meses, o estúdio havia desenvolvido um modo de cooperação que ela jamais havia presenciado. Ninguém era mandante, as ideias eram expressadas e retrabalhadas e o resultado final tinha mais qualidade. Todo o cinema seguia hierarquias, fazendo do seu estúdio uma ilha isolada.
O cinema é sexista e também é um meio profundamente arrogante. Nós somos artistas, é difícil de lidar. A mulher deve começar a ser vista como uma pessoa que colabora, e muito, no trabalho criativo. Especialmente na questão do som, nós temos muito a acrescentar. O olhar feminino permite ver a delicadeza, a finura e o detalhe. E é isso que a edição de som deve explorar.
O estúdio recebeu uma proposta para realizar o desenho sonoro de um filme. O diretor, como é muito comum, tinha uma visão conservadora do som. Seu pedido era que, em uma vila do interior do Rio Grande do Sul, houvesse vacas mugindo, galos cantando ao amanhecer e sinos soando na igreja.
Quando assistiu ao filme, Maria visualizou nele dois momentos distintos. O início, mais quadrado, mais realista, que pedia uma edição tradicional. E o ponto de virada, quando a personagem tornava-se messiânica. Nessa parte, o tom sonoro do filme deveria se transformar para mais subjetivo, acompanhando a mudança de personalidade junto com a narrativa. Formalizou sua proposta de desenho sonoro, descrevendo-o em cinco páginas por escrito e conseguiu o filme.
Na primeira batalha ouvimos todos os tiros, todos os gritos, todos os cavalos. Na segunda batalha ouvimos o que as pessoas sentem. O som da respiração mostra o medo, que faz a batalha real parecer um sonho distante do inferno vivenciado só com os sentimentos daquela pessoa. A Paixão de Jacobina teve uma leitura feminina, mesmo que tenha sido feito por um homem.
Depois que começou a trabalhar com som, nunca voltou a ser difícil dormir; em geral, o cansaço vencia. Com o estúdio, é dominada por uma alegria, que a faz trabalhar cada vez mais, esperando não perder nada. Os equipamentos analógicos são substituídos pelos digitais e esse é outro motivo para passar mais tempo por ali.
Desse lugar, vê a filha ressentida pelos pais trabalharem tanto, culpando-os por não ter tido infância. Maria tem consciência de que o mundo de uma adolescente é restrito, mas que também é o único mundo conhecido por ela. Após esse episódio, Maria começa a se arrepender, notando que era ela quem sempre perderia: sua sócia não tem filhos, seu marido é homem.
O cinema é uma profissão difícil de entrar, mas manter-se nela é quase impossível. Para conseguir ficar, superando a vontade de desistir, você tem que estar sempre brigando com os outros, consigo mesma. Trabalhando e estudando muito. O que significa que às vezes você perde a noção de que está em uma parte incrível da sua vida.
As noites, os fins de semana, os feriados, os aniversários, todas situações cotidianas que Maria continua sacrificando para permanecer. Por mais que estivesse fazendo um trabalho excelente, dominando novas tecnologias e proporcionando a melhor vida possível para sua filha, sentia-se insuficiente. Desviando do caminho proposto pela sociedade, era acossada pela culpa materna, por deixar a filha crescer longe dos seus sentidos.
Nesse ritmo, os anos passam rápido, as propostas aumentam e ela começa a se envolver politicamente com a área. A cada novo projeto, Maria lida com desafios imprevisíveis e, após vinte anos trabalhando com som, ainda continua apaixonada por essa característica assustadora de sua profissão, recusando-se a ter medo. Suas ações no cinema brasileiro culminaram no prêmio de Personalidade Sonora.
O Prêmio de personalidade sonora em 2017, não é só por um trabalho bom. Ele é o prêmio pela minha história no cinema, pela forma que eu me envolvi com a área. Montei a Associação dos Profissionais de Som Cinematográfico, sou associada à Associação Brasileira de Cinematografia e faço com eles grupos de trabalho que trazem masterclasses para o Rio de Janeiro. Ganhar o prêmio de personalidade sonora significa uma aprovação em relação a tudo que passei e sacrifiquei para tornar o som mais significativo no cinema.
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Em casa, gira a maçaneta da porta do quarto da filha e na sua frente enxerga parte de si mesma em outra pessoa. Anos atrás, descobriu que ela não seguiria seus passos profissionais e a culpa ocupou seus pensamentos. No universo da filha, já formada, Maria a escuta afirmar que será atriz. Seus olhos marejam: sua filha renunciou ao medo.