Na infância, eu acordava com as luzes empesteando o quarto ou com os sons férreos que vinham da cozinha. Caminhava até a mesa e minha mãe estava lá, os olhos estacionados num ponto qualquer; as mãos inertes, segurando um pão, uma xícara de café. Não foram poucas as vezes em que perguntei o motivo dela ficar parecendo uma estátua, mas ela respondia que eram só os pensamentos. Como ela nunca os explicava, comecei a achar que eles eram coisas difíceis de dizer. Eu gostaria de descobrí-los, entender de onde eles vinham, quais palavras eles faziam brotar na mente e por que deixavam minha mãe daquele jeito, sem nem piscar. Minha ideia foi imitá-la.
Eu escolhia um objeto de minha preferência e ficava concentrada nele. Uma das vezes selecionei a sanduicheira e, como se ela fosse a própria Medusa, esperava ser petrificada. Absorta pelo eletrodoméstico, eu enxergava suas qualidades físicas e funcionais: o corpo prateado, a luz verde, a trava abrindo e o queijo quente saindo. Isso era pensar? Não. Não poderia ser tão fácil.
Depois de encarar tantos objetos, comecei a virar estátua sem perceber. Às vezes, eu ficava na sala, um livro aberto nas mãos, os olhos estáticos. Meu pai chegava para assistir jogos de futebol e eu não o via até sua voz chegar abafada, no fim de um eco, para quebrar o feitiço. Falava com ele ainda nebulosa, sentindo se desfazer sob a pele uma camada de rocha. Era imenso aquele sentimento de se dissolver no mundo, de deixar nascer e morrer pensamentos numa velocidade assombrosa.
Aos poucos, fui entendendo suas formas e eles chegavam mais ou menos assim: dois mais dois igual a quatro, na minha casa moram quatro pessoas, quanta gente no mundo, já são oito bilhões? Estradas, rodas, bicicleta, pés descalços, praia, oceano, criaturas desconhecidas, vinte mil léguas submarinas, yellow submarine, eu nem ligo para os Beatles, o apanhador no campo de centeio… Bem que Montaigne dizia: “se não nos ocuparmos em certo assunto que os refreie e contenha, atiram-se desagregados, para cá e para lá, no vago campo das imaginações”.
É só se deixar deslumbrar pelos pensamentos para conhecer sua confusão. Hoje mesmo, agi como uma lente desajustada: todo o foco, que estava em terminar o café, ir para o banho e começar a trabalhar, foi reorientado por causa de uma música desenterrada lá do fundo da minha mente. “Baba baby, baby baba, baba”. É, talvez pensar não seja tão difícil quanto eu achava e a minha mãe, naqueles dias, bem que poderia estar recordando alguma música grudenta de sua infância.