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Inércia

Resenha do livro "Trânsito", Rachel cusk

Em destaque, um louva-a-deus aprisionado por uma mão adulta dentro de um copo plástico; ao fundo, o esbranquiçado do céu e o azul da água. Essa imagem estática está na minha frente e mesmo com um esforço de imaginação, percebo poucos movimentos possíveis: do rio e da luz, que sofrem pequenas oscilações; do inseto, quase sem espaço, batendo contra as paredes transparentes; da mão que poderia acabar com a agonia e libertar o inseto. Essa imagem que estampa Trânsito é esquisita e parece até contraditória com o título do livro, porque quando pondero sobre a palavra trânsito, visualizo a afluência de pessoas em uma avenida lotada; penso nas linhas férreas, nas turbinas de aviões e na fumaça dos carros; sinto o caráter passageiro de toda experiência humana. O próprio louva-a-deus é associado à entrega ao fluxo da vida. Mas, como na figura é tudo muito restrito, imagino um engarrafamento, com a cacofonia de buzinas característica e pessoas presas em suas grandes latarias, reféns de um tempo que não passa; deduzo que o movimento natural da vida está sendo capturado por algo quase invisível, mas avassalador.

Se a leitura completa dos planetas prevê um trânsito importante no céu hoje, qualquer acontecimento do dia poderá ser adequado ao que foi falado previamente. A astrologia é uma ilusão de significado e funciona como uma profecia autorrealizável, como se viver fosse ler. A existência do destino é uma ideia sedutora e as diferentes formas de previsões inventadas talvez sejam uma resposta humana para o sentimento de impotência deixado pelas experiências vividas. Ler para viver concede uma ilusão de controle do futuro e, por isso, vale a pena abrir mão da assustadora liberdade. Reconhecer as leis do destino é oposto a ter vontades, aceitar a capacidade de destruição e se responsabilizar pela vida. A estagnação de Trânsito é essa: personagens que estão de alguma forma suspensos no tempo por não conseguirem superar o passado que pesa como chumbo.

Ouvir conversas dos vizinhos em diferentes idiomas, não saber onde está, nem em que fase sua vida se encontra. Ser diferente de seus pais, fazer de tudo para que sua filha não sinta que só é amada quando aceita seus desejos. Preservar o retrato de uma jovem mulher sorridente em um cômodo sujo, entulhado e opressivo. Escrever um livro autobiográfico para controlar a história. Pesquisar durante anos a vida de um pintor e não admitir que ele passou por traumas de infância parecidos com os seus. Construir uma casa de vidro no meio do mato, ver o seu pai criticar até isso e dizer: basta. Ser adotado, crescer como uma criança gentil, tornar-se rebelde na adolescência para, na vida adulta, ler que a psicologia previu seus comportamentos. Trair a mulher, caminhar por Roma, ligar para a prima e dizer, nas entrelinhas, que não vê mais futuro. Gravar centenas de horas dos jantares de família, perceber que os irmãos notaram, dividir com eles as audições como forma de compreender o relacionamento dos pais, perder os pais, não dividir as fitas com os irmãos, assistir eles se distanciando. Deixar os filhos livres, dizer que basta eles serem amados, ver o marido controla-los como a filha dele era controlada no relacionamento anterior. Ler sete livros por semana, começar a confundir realidade e ficção, discutir longamente com o parceiro sobre histórias que duvida serem fatos. Não reconhecer como pai o homem que te criou, querer conhecer quem te gerou, chorar de soluçar por não conseguir o que quer. Viver todas as histórias que te contam como se fossem sua vida.

Vidas atrás de vitrines que, quando iluminadas, assemelham-se a palcos onde ocorrem cenas de amor, discussão, solidão, diligência, amizade, tédio e dissociação. Quem se dissocia passa a ter a sensação de estar desempenhando um papel numa peça de teatro, de forma que os lugares parecem irreais, como o anoitecer de uma cidade que ao invés de escuridão, traz uma luz que irradia de todos os lados. A irrealidade sentida por diferentes personagens de Trânsito talvez esteja refletida nas casas: nenhuma delas parece habitável. Algumas imitam túmulos por causa do frio e do pó de uma reforma; outras são tão perfeitas, que se assemelham a uma casa modelo, planejada por cenógrafos; ainda tem a casa de vidro e aquela que aparenta estar prestes a desabar, de tão imunda, com o teto afundado e amarelado. O deslocamento dos personagens em relação às suas vidas e aos espaços que elas ocupam parece ser uma outra forma de mostrar sua inércia no tempo.

Quem se sente estagnado busca trânsito. Paga por leituras astrológicas, viaja para outros lugares, ouve a vida de diferentes pessoas, presta atenção no mundo, muda de ideia, busca por poder. Mas será que isso é o suficiente para fazer a vida parecer mais como vida e menos como encenação Dentro de mais uma vitrine da vida, quando menos se espera, os olhos se abrem no fim da madrugada. Eles enxergam as ruínas do jantar de ontem e avistam, para além da janela, uma estranha luz subterrânea. Algo começa a mudar no interior do corpo, como placas tectônicas se movendo por debaixo do solo terrestre. Então os pés caminham para fora do palco e avançam com a segurança de que a cabeça não irá se voltar para trás.